Uma Noite na Taverna
- Weveson C. Oliveira
- 24 de jun.
- 6 min de leitura

Zé Carlos era um homem solitário, com um andar desengonçado e ares pacíficos, mas a não se deixar enganar pela pouca estatura, o sujeito, quando se fazia necessário, caia de peito numa briga e só saia de lá depois que tudo se acabava ou caso viesse a perder a consciência. O sangue dos Silva corria vigorosamente em suas veias, apesar da “Cruz” da bastardia vir sempre a frente de seu sobrenome, pois assim eram intitulados os filhos ilegítimos da vila de Diamantes de tal modo que quando alguém se esquecia de seu vulgo — Zé Carlos Taverneiro — chamavam-lhe pelo nome oficial de José Carlos Cruz de Souza. Naquela noite fria de junho, ele limpava o carcomido balcão onde atendia seus clientes, tirando a crosta pegajosa de sujeira que se formara ali pelo derramamento de cerveja e gordura, um cheiro de caldo de galinha exalava da cozinha invadindo todo o ambiente com seus temperos de ervas finas, alho e cebola, sendo preparado por Matilda, sua cozinheira e possível “amiga”, ao menos segundo diziam as más línguas. Zé Carlos nunca assumira o relacionamento, dado que a mulher era feia como briga de foice e mal-humorada como gambá de resguardo. Corujas, raposas e outros animais noturnos, cantavam na escuridão, ressoando suas vozes ao longe. Fora aqueles elementos que praticamente moravam ali na taverna, como Amauri Bom de Briga, João Leonidas e Manguinha Tombador de Charrete, cuja única coisa que consumiam era a paciência de Zé Carlos, o movimento estava bem fraco aquele dia. Ele pensara até em cancelar a panelada de caldo para não jogar comida fora ou até mesmo ter de dar a refeição de graça para a turminha que não saia dali, mas Matilda bateu-lhe com a colher de pau na cabeça e praguejando mil impropérios falou que não saíra de casa para ficar de braços cruzados na cozinha e que tomasse jeito de ser homem de fé, pois o cheiro do caldo iria atrair clientes ao local, o que de fato aconteceu.
O primeiro a chegar atraído pelos perfumes da iguaria de Matilda foi bardo Golias, com sua longa capa verde musgo e seu alaúde de cordas douradas, instantes depois entraram os primos da família dos Oliveiras Renato Bicho-Pau e Luciano Peixe-Boi. A filha de Riana chamada de Donzela do Senhorio e Diras, o Soturno, vieram logo em seguida:
— Eu não falei, peste de homem burro! — exclamou Matilda dando outra colherada na cabeça de Zé Carlos — Ervas finas, com alho e cebola no caldo de galinha é feitiço de pro estrongo da gente. Sente o cheirinho de maravilha, homem de Deus, sente!
O taverneiro até teria dado uns berros com ela, mas seu humor havia melhorado substancialmente após ver toda aquela gente entrando em seu estabelecimento, de tão animado, deu uma dose de cachaça de graça para quem comprasse um prato de caldo. Um burburinho se instalou no local, antes triste e silenciosos. Pessoas conversando alto de dando gargalhadas. O crepitar das chamas na fogueira iluminava a Taverna espantando o frio que vinha do lado de fora. Po volta das onze da noite, quando todos já estavam saciados e um tanto embriagados, Golias começou a dedilhar seu alaúde com acordes melodiosos e dançantes.
— Conte-nos uma história, bardo falastrão! — exclamou Peixe-Boi.
— Vai me pagar quanto? — perguntou Golias.
— Onde já se viu, pagar para ouvir lorotas…
— Até esterco tem sido trocado por alguns cobres nesta vila, meu caro. Quanto mais a sublime arte da badardia.
— Dou-te um prato extra de caldo, se nos contar uma boa história. — sugeriu Zé Carlos.
— Pois bem, negócio feito. — Golias começou a dedilhar seu alaúde — Há muito tempo atrás…
Era um dia chuvoso. O chão estava um verdadeiro atoleiro. Aos pés do Monte Litânio tropas do Cavaleiro Azul se encontravam frente a frente com os homens do Cavaleiro Verde. Quem poderia pensar que os dois varões estariam em lados opostos numa disputa? Quando ainda eram apenas adolescentes, brincando de lutas e cavalaria, quem os via diria serem amigos inseparáveis. Ailan que mais tarde se tornaria o Cavaleiro Verde, era um jovem magro e alto, mas muito ágil e astuto. Já William era baixo e parrudo, muito comunicativo e de grande criatividade. Os dois eram como unha e carne. Eles se complementavam em suas diferenças. Certa vez e inventaram de roubar uma galinha de um fazendeiro de Diamantes. Enquanto William pegou o fazendeiro na conversa na porta de casa, Ailan foi sorrateiramente até o galinheiro e sequestrou uma poedeira. Quando o sujeito foi dar falta do bicho, eles já tinham colhido uma dúzia de ovos. Mas é como dizem, o tempo é uma força avassaladora, e nada nem ninguém permanece igual ante a sua passagem. Apesar de sua amizade infantil estavam ambos ali, com suas armaduras e bandeiras, montados em seus corcéis, nutrindo um pelo outro nada além de desprezo:— Por que matou meus operários? — Perguntou o Cavaleiro Azul.
— Tínhamos um acordo. — Respondeu o Cavaleiro Verde — A Estrada do Desvio só seria utilizada durante o período das cheias. Sabe o quanto o uso dessa passagem em minhas terras é prejudicial para os meus negócios.
Diamantes era uma ilha entre montanhas, para chegar ao local ou se passava pela ponte do Rio dos Cágados ou pelas terras do Cavaleiro Verde. No período das cheias as águas sobrepunham-se à ponte, fechando o acesso. Um acordo feito entre ambos os cavaleiros dava passagem à população pelas terras do Cavaleiro Verde nesse período, mas o Azul queria que a Estrada do Desvio se mantivesse aberta permanentemente.
— O bem-estar do povo não pode estar acima dos interesses de um só homem. — Rebateu o ele.
— Desde quando você se preocupa com alguém além de si mesmo, William? — Respondeu o Cavaleiro Verde elevando o tom de voz.
William temia um enfrentamento direto com seu adversário, estava em menor número e uma justa poderia trazer sérios danos para sua integridade física, dado que ambos os cavaleiros tinham um potencial semelhante em batalha. Mas toda aquela cena não passava de um blefe, uma demonstração de força. Dias antes, o Suserano da Vila havia recebido um mensageiro da Torre de Diamantes, pedindo que parte das terras do Cavaleiro Verde fossem desapropriadas para construção permanente da Estrada do Desvio. A resposta veio a cavalo. Fazendo sinal para um de seus homens, o Cavaleiro Azul, pediu-lhe para que retirasse e lesse o documento em sua algibeira, o qual dava ordens ao fidalgo para que cedesse as terras sob o risco de perder seu título de Cavaleiro. Ailan ficou sem chão. Não esperava que William pudesse ser tão baixo. Os Cavaleiros tinham um código de honra pelo qual zelavam religiosamente e segundo ele, querelas e disputam entre dois cavaleiros deveriam ser resolvidos num embate de honra, ou seja, numa luta. Mas aquilo era uma verdadeira depravação. Um sacrilégio, William havia perdido completamente os escrúpulos. O primeiro impulso de Ailan foi de avançar contra seu inimigo com cavalos e lanças, mas sabia que perderia a razão procedendo assim. A oportunidade de se vingar viria em breve. Ele estava arquitetando planos grandiosos para desbancar o Cavaleiro Azul que já não contava com muita popularidade por parte do povo. Uma guerra era orquestrada, um grande embate, que ficaria lembrado pela história como a Guerra dos Quatro Anos.
Depois de uma calorosa salva de palmas dos ouvintes, Bicho-Pau se levantou da mesa coçando o cenho, ficou uns infantes pensativo, parecendo falar consigo mesmo, andando de um lado para o outro. Peixe-Boi o encarou como se dissesse “Se você não falar, eu falo”. Ele então, percebendo o problema que aquilo poderia acarretar, falou:
— Bardo Golias, não me leve a mal, mas essa história está mal contada! Pois Cavaleiro Verde recebeu um gordo pagamento em tributos da vila para manter a estrada do Desvio aberta permanentemente. Isso dos dois quase se enfrentarem foi quando houve aquela perturbação no Arraial de Novo Engenho por conta da criatura bestial que assombrou aquelas terras nos tempos da Academia de Cavaleiros Diamantes. Vó Matriarca sempre conta essa história!
— Pois meu caro, isso é tradição entre os bardos de diamantes, ouvi essa canção do falecido Mané Casinha, um dos maiores cantadeiros de causos que essa região já viu. Ele não poderia estar errado.
Peixe-Boi deu um soco na mesa, chamando Golias de insolente, como aquele andarilho poderia contestar a veracidade das histórias de sua Avó? Bicho-Pau fez com que se acalmasse, mas um clima tenso se instalou na taverna, deixando todos ressabiados. Donzela do Senhorio tomando a palavra, tentou apaziguar a situação:
— Segundo a crônicas e Meneias, o Escrivão, os dois estão meio certos e meio errados. O que houve, na verdade, foi que o tributo foi pago depois dos dois cavaleiros quase se enfrentarem em batalha sob o monte Litânio.
— Bah! — Exclamou Golias — Meneias é um tonto, um pau-mandado, que escreve qualquer coisa que lhe pagam para escrever! Não se pode confiar num homem assim!
— E você também não canta o que te pagam para cantar, trovador de araque!? — provocou Peixe-Boi.
Golias se sentindo ofendido, e já estando um tanto alto, arremessou em sua direção um caneco de cerveja, mas Peixe-Boi desviou a tempo, fazendo-o se chocar contra a parede ao fundo.
— Filho duma Jabiraca! Eu vou arrancar seu coro, praga dos infernos… — bravejou Peixe-Boi derrubando cadeira e mesa com tudo ao se levantar.
O caos se instalou na Taverna do Zé Carlos, era soco de um lado, pinga voando do outro, alaúde quebrado no chão, e gente pelada sem saber porque perdeu a roupa. Zé Carlos observava aquilo tudo sorridente e satisfeito, a noite do caldo de galinha com cachaça fora uma sucesso.





Comentários